Democracia vai além do voto livre e universal


O que é blasfêmia, o que é heresia, o que significa liberdade de expressão, quais os seus limites? Um trailer rudimentar de 14 minutos de um filme inexistente chamado A inocência dos islamitas jogou estas questões nas manchetes da imprensa mundial desde a terça-feira, 11 de setembro, exatos onze anos do ataque da Al-Qaeda às torres gêmeas de Nova York.
Se acrescentarmos as primeiras informações sobre o produtor-diretor do filmete (egípcio-americano, copta, associado aos militantes de direita) e às primeiras evidências de que o ataque contra o consulado americano em Benghazi (Líbia) não foi espontâneo, mas planejado, arma-se novamente a maléfica equação montada pela irresistível convergência dos extremismos religiosos e políticos.
O que interessa neste Observatório são as questões preliminares sugeridas acima. Quando Friederich Nietzsche proclamou “Deus está morto” (1888, A gaia ciência) muitos a consideraram blasfema, armou-se uma tremenda celeuma nos meios intelectuais do Ocidente, mas ninguém tentou linchá-lo. Um século antes, a Constituição americana e suas emendas já haviam consagrado a liberdade de expressão como um dos direitos fundamentais do homem. A frase nietzscheana em inglês chegou a servir de capa do semanário Time, um dos mais importantes veículos jornalísticos do mundo.
No entanto, na semana passada, o ministro das Relações Exteriores da Argélia, Mourad Medelci, considerado “moderado”, esteve na Espanha e declarou ao El País que é imperioso adotar “um marco jurídico mundial contra a blasfêmia” (15/9, pág. 4). Não explicou o que considera blasfêmia, nem indicou quem e como serão definidas as blasfêmias. Embora os mouros tenham sido igualmente perseguidos pela Inquisição espanhola, o argelino não percebeu que estava propondo uma reedição dos seus procedimentos (ver aqui, em espanhol).
Conteúdo digital
É bom lembrar que, em 1989, o premiado escritor indiano Salman Rushdie foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini pela publicação do romance Versos satânicos, considerado ofensivo ao Alcorão e ao islamismo. A condenação não foi propriamente por blasfêmia, mas por algo semelhante: apostasia (abandono da fé), já que o autor, considerado maometano, não tinha o direito de injuriar, isto é, duvidar das crenças do profeta Maomé.
Rushdie não foi assassinado, escondeu-se por mais de uma década, multidões enfurecidas queimaram seu livro, seus tradutores foram ameaçados. O ministro Medelci não explicou quais seriam os critérios para avaliar o conteúdo de uma obra como a de Rushdie.
Para evitar que a questão da intolerância religiosa fique confinada ao universo islâmico, convém registrar que o inglês William Tyndale, tradutor da primeira Bíblia impressa em inglês, foi garroteado na Bélgica, em 1536. Neste ano, por casualidade, foi estabelecida a infame Inquisição em Portugal e colônias, que manteve o Brasil alheio aos benefícios da Era Gutenberg até 1808.
Nos primeiros momentos, em seguida à explosão de vandalismo no Cairo contra o trailer americano, o novo presidente egípcio, Mohamed Mursi – o primeiro democraticamente eleito na história do país –, além de considerá-lo “agressão”, tentou estabelecer uma conexão entre o Estado americano e a produção do filme. Recuou. Se insistisse, a “primavera árabe” que o levou ao poder ficaria drasticamente reduzida à questão eleitoral, sem oferecer as garantias pétreas do Estado de Direito, entre elas a liberdade de expressão.
Surge aqui outra questão crucial, esta levantada pelo Washington Post (sábado, 15/9): o Google, a rede social proprietária do YouTube que veiculou o clipe, não poderia simplesmente embargar o vídeo e esvaziar a onda de violência?
O autor da matéria, Craig Timberg, esclarece que entre as oito alternativas para a supressão de um vídeo incluídas nas “Diretrizes Comunitárias do YouTube” não se encontra a incitação a motins populares. No entanto, as operadoras da rede no Egito, Libia, Índia, Indonésia e Afeganistão, por sua conta, assumiram a autorregulação e bloquearam o acesso à provocação vidiótica. Não há precedentes de embargos deste tipo dentro dos EUA (ver aqui, em inglês).
Significa que as redes sociais globais se transformaram em árbitros absolutos substituindo-se aos tribunais, entidades reguladoras ou autoreguladoras no tocante ao conteúdo do que veiculam. A FCC (Federal Communications Commission) pode interferir no conteúdo transmitido ou irradiado por concessionárias de radiodifusão nos EUA, mas não está habilitada a fazer o mesmo no tocante aos emissores de conteúdo digital. Mesmo querendo, seria tecnicamente impossível. O Twitter – como o definiu José Saramago – é um grunhido, impossível submetê-lo a um embargo ou censura.
Orgulho incontido
Mas grunhidos de intolerância podem ser minimizados quando a democracia converte-se em mentalidade e transfere-se das Constituições para o plano da consciência individual. O fanatismo político-religioso ao qual se entregou de forma deliberada o Partido Republicano dos EUA deixou a esfera de efêmera circunstância eleitoral para se converter em uma deformação moral do republicanismo concebido pelos Founding Fathers.
O individualismo insano que se irradia do Tea Party – e inclusive da teologia mórmon professada por Mitt Romney – é uma versão pervertida do absolutismo do “Estado sou eu”. O Estado somos nós, igualados pelas diferenças inerentes à humanidade.
O preconceito racial não foi eliminado da mentalidade americana com a chegada de um negro à Casa Branca. Foi ideologizado, o que é pior. O tradicional antissemitismo alemão tornou-se violento quando Adolf Hitler o politizou, acusando os judeus de inventar o bolchevismo para dominar o mundo.
Os sangrentos atentados praticados por ativistas da direita americana mostram que o país-paradigma da democracia, mesmo depois de dois séculos de intenso aperfeiçoamento, não conseguiu assimilar seus fundamentos morais.
Por que então exigir que democracias recém paridas em revoltas populares sejam capazes de comportar-se sensatamente? “Estamos fartos de ser comparados a terroristas pelos americanos”, declarou ao repórter do El País um estudante de jornalismo, 19 anos, orgulhoso da façanha de arrancar a bandeira do mastro da embaixada dos EUA no Cairo.
O clipe-pivô dessa cruzada não falava em terrorismo, muito menos em Maomé. O futuro colega de profissão estuda na Universidade Americana da capital egípcia.

Fonte: Observatório da Imprensa

Postar um comentário

0 Comentários