MONÓLOGO DE UMA SOMBRA
Augusto dos Anjos
"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,Do cosmopolitismo das moneras...Pólipo de recônditas reentrâncias,Larva de caos telúrico, procedoDa escuridão do cósmico segredo,Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.Em minha ignota mônada, ampla, vibraA alma dos movimentos rotatórios...E é de mim que decorrem, simultâneas,A sáude das forças subterrâneasE a morbidez dos seres ilusórios!
Pairando acima dos mundanos tetos,Não conheço o acidente da Senectus- Esta universitária sanguessugaQue produz, sem dispêndio algum de vÃrus,O amarelecimento do papirusE a miséria anatômica da ruga!
Na existência social, possuo uma arma- O metafisicismo de Abidarma -E trago, sem bramánicas tesouras,Como um dorso de azémola passiva,A solidariedade subjetivaDe todas as espécies sofredoras.
Como um pouco de saliva quotidianaMostro meu nojo á Natureza Humana.A podridão me serve de Evangelho...Amo o esterco, os resÃduos ruins dos quiosquesE o animal inferior que urra nos bosquesE com certeza meu irmão mais velho!
Tal qual quem para o próprio túmulo olha, Amarguradamente se me antolha,À luz do americano plenilúnio,Na alma crepuscular de minha raçaComo urna vocação para a DesgraçaE um tropismo ancestral para o Infurtúnio.
Aà vem sujo, a coçar chagas plebéias,Trazendo no deserto das idéiasO desespero endêmico do inferno,Com a cara hirta, tatuada de fuligensEsse mineiro doido das origens,Que se chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender, quebrando estéreis normas,A vida fenomênica das Formas,Que, iguais a fogos passageiros, luzem...E apenas encontrou na idéia gasta,O horror dessa mecânica nefasta,A que todas as coisas se reduzem!
E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,Sobre a esteira sarcófaga das pestesA mostrar, já nos últimos momentos,Como quem se submete a uma charqueada,Ao clarão tropical da luz danada,O espólio dos seus dedos peçonhentos.
Tal a finalidade dos estames!Mas ele viverá, rotos os liamesDessa estranguladora lei que apertaTodos os agregados perecÃveis,Nas eterizações indefinÃveisDa energia intra-atômica liberta!
Será calor, causa ubÃqua de gozo,Raio X, magnetismo misterioso,Quimiotaxia, ondulação aérea,Fonte de repulsões e de prazeres,Sonoridade potencial dos seres,Estrangulada dentro da matéria!
E o que ele foi: clavÃculas, abdômen,O coração, a boca, em sÃntese, o Homem,- Engrenagem de vÃsceras vulgares -Os dedos carregados de peçonha,Tudo coube na lógica medonhaDos apodrecimentos musculares!
A desarrumação dos intestinosAssombra! Vede-a! Os vermes assassinosDentro daquela massa que o húmus come,Numa glutoneria hedionda, brincam,Como as cadelas que as dentuças trincamNo espasmo fisiológico da fome.
E unia trágica festa emocionante!A bacteriologia inventarianteToma conta do corpo que apodrece...E até os membros da famÃlia engulham,Vendo as larvas malignas que se embrulhamNo cadáver malsão, fazendo um s.
E foi então para isto que esse doudoEstragou o vibrátil plasma todo,À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...Num suicÃdio graduado, consumir-se,E após tantas vigÃlias, reduzir-seÀ herança miserável de micróbios!
Estoutro agora é o sátiro peraltaQue o sensualismo sodomista exalta,Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...Como que, em suas células vilÃssimas,Há estratificações requintadÃssimasDe uma animalidade sem castigo.
Brancas bacantes bêbedas o beijam.Suas artérias hÃrcicas latejam,Sentindo o odor das carnações abstêmias,E á noite, vai gozar, ébrio de vÃcio,No sombrio bazar do meretrÃcio,O cuspo afrodisÃaco das fêmeas.
No horror de sua anômala nevrose,Toda a sensualidade da simbiose,Uivando, á noite, em lúbricos arroubos,Como no babilônico sansara,Lembra a fome incoercÃvel que escancaraA mucosa carnÃvora dos lobos.
Sôfrego, o monstro as vÃtimas aguarda.Negra paixão congênita, bastarda,Do seu zooplasma ofÃdico resulta...E explode, igual á luz que o ar acomete,Com a veemência mavórtica do arÃeteE os arremessos de uma catapulta.
Mas muitas vezes, quando a noite avança,Hirto, observa através a tênue trançaDos filamentos fluÃdicos de um haloA destra descamada de um duende,Que tateando nas tênebras, se estendeDentro da noite má, para agarrá-lo!
Cresce-lhe a intracefálica tortura,E de su'alma na cavema escura,Fazendo ultra-epiléticos esforços,Acorda, com os candieiros apagados,Numa coreografia de danados,A famÃlia alarmada dos remorsos.
É o despertar de um povo subterrâneo!E a fauna cavernÃcola do crânio- Macbetbs da patológica vigÃlia,Mostrando, em rembrandtescas telas várias,As incestuosidades sangüináriasQue ele tem praticado na famÃlia.
As alucinações tácteis pululam.Sente que megatérios o estrangulam...A asa negra das moscas o horroriza;E autopsiando a amarÃssima existênciaEncontra um cancro assÃduo na consciênciaE três manchas de sangue na camisa!
MÃngua-se o combustÃvel da lanternaE a consciência do sátiro se inferna,Reconhecendo, bêbedo de sono,Na própria ânsia dionÃsica do gozo,Essa necessidade de horroroso,Que é talvez propriedade do carbono!
Ah! Dentro de toda a alma existe a provaDe que a dor como um dartro se renova,Quando o prazer barbaramente a ataca...Assim também, observa a ciência crua,Dentro da elipse ignÃvoma da luaA realidade de urna esfera opaca.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,Abranda as rochas rÃgidas, torna águaTodo o fogo telúrico profundoE reduz, sem que, entanto, a desintegre,À condição de uma planÃcie alegre,A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odientoPelas grandes razões do sentimento,Sem os métodos da abstrusa ciência friaE os trovões gritadores da dialética,Que a mais alta expressão da dor estéticaConsiste essencialmente na alegria.
Continua o martÃrio das criaturas:- O homicÃdio nas vielas mais escuras,- O ferido que a hostil gleba atra escarva,- O último solilóquio dos suicidas -E eu sinto a dor de todas essas vidasEm minha vida anônima de larva!"
Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,Da luz da lua aos pálidos venábulos,Na ânsia de um nervosÃssimo entusiasmo,Julgava ouvir monótonas corujas,Executando, entre caveiras sujas,A orquestra arrepiadora do sarcasmo!
Era a elegia panteÃsta do Universo,Na podridão do sangue humano imerso,ProstituÃdo talvez, em suas bases...Era a canção da Natureza exausta,Chorando e rindo na ironia infaustaDa incoerência infernal daquelas frases.
E o turbilhão de tais fonemas acresTrovejando grandiloquos massacres,Há-de ferir-me as auditivas portas,Até que minha efêmera cabeçaReverta á quietação da treva espessaE à palidez das fotosferas mortas!
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